NARRAÇÃO
Silêncio no igarapé. Começando a
madrugada. A água escura, marrom pela acidez da decomposição das folhas, porém,
translúcida, (semelhante a uma garrafa de vidro marrom), fria, refletindo as
primeiras luzes do amanhecer que conseguem atravessar a fechada folhagem da
mata gigante.
Uma neblina de evaporação sobe desde
as áreas inundadas. O ambiente se sente opressor pela sua grandeza, pelo seu
isolamento e é nesse misterioso amanhecer que os indígenas chamam os espíritos
de seus mortos, com sons rítmicos. Espíritos que permanecem na floresta e que
têm o poder para influenciar os bons e os maus, trazendo paz a uns e
amaldiçoando os outros.
A tribo respeita e ao mesmo tempo
teme os espíritos dos mortos. Toda a sua crença no mundo espiritual se
identifica com a mata circundante, seus sons, seus mistérios e a profundidade
horizontal à frente, que entre troncos e cipós parece não ter fim.
As lendas são muitas; têm espíritos
que levam crianças antes mesmo de nascerem, outros provocam deformações, outros
atacam idosos que sofrem, claudicam e desaparecem levados por eles, outros
trazem chuvas torrenciais, que têm poder quase exterminador, obrigando a tribo
a ficar protegida dentro das malocas. Os indígenas entendem estes fenômenos
naturais como um castigo para aquele que tenha cometido transgressões contra o
código de ética da tribo, ou contra seu Cacique, Pajé ou Xamã.
A Amazônia é misteriosa para seus
habitantes naturais, e para nós duplamente assustadora.
Os sons emitidos pelas espécies
animais são variados: são agudos, graves, gritos, gemidos rítmicos e cadências
estridentes. Centenas de macacos emitem um clamor exasperante, junto a cantos
afinados de pássaros exóticos. A mim, particularmente, me afeta este concerto
estranho e ensurdecedor. Começo a sentir um desassossego esquisito que se
inicia no “ouvir” e que logo após se espalha pelo meu corpo e mente, até
dominar meu raciocínio lógico, fazendo-me tremer de pavor irracional.
Parece-me que os mortos estão perto,
flutuando entre a folhagem. Sem entender muito os motivos, começo a imitar as
mulheres indígenas, e a seguir seus rítmicos cantos batendo ao mesmo tempo, com
os pés descalços no solo místico da floresta, que se ergue poeirento no
descampado ao redor da taba.
Esta experiencia atemoriza-me e me
leva a outros níveis de consciência. Pergunto-me quem sou, qual é o recanto
desconhecido de mim mesma que aflora neste instante sem eu saber porquê, sem
explicação racional alguma, transfigurando-me em um ser totalmente instintivo,
alheio à civilização e a séculos de aculturação impressa nos meus genes.
Transformo-me em alguém diferente, que absorve os mistérios selváticos pela
pele, pelo ouvido, pelo pensamento que se acalma e adormece. Sinto minha alma
avolumando-se e dominando totalmente meu corpo e pensamento.
O sol vai ganhando altura. A
floresta se ilumina com os raios solares que se filtram através do teto rendado
verde escuro, vegetal. Os macacos silenciam pouco a pouco, os pássaros assobiam
musicalmente, os jacarés submergem tranquilos e desaparecem, e os insetos
começam sua dança infernal.
Os mortos acalmam-se, calam-se,
agradecem o cerimonial prestado em sua honra e vão se retirando do local. O
grupo de indígenas, livre da influência dos seus antepassados, entra no igarapé
gelado e toma banho. Cada um deles limpa a sujeira de seu corpo e de seu
próprio espirito. Relaxa, rir, brinca e tudo no ambiente volta ao normal.
As Vitórias Regias (Vitória amazônica)
que abriram suas corolas à noite liberam seu adocicado perfume, e com o sol
vão fechando as suas flores pouco a pouco. entre as grandes folhas circulares
flutuantes com uma dobra na borda de cor avermelhado. Os Aguapés ou Jacintos de
Água, (Eichhornia crassipes) mostram toda a beleza de suas flores azuis
e seus pecíolos bulbosos, como esponjas, que lhe permitem flutuar e cobrir a
superfície aquática. Na altura de Mognos
e Sumaúmas as bromélias encantam com seu esplendor rústico e selvagem. O
pássaro ferreiro, Araponga da Amazônia, nos arredores do Rio Negro, canta. E
seu canto tem um som igual ao de um martelo batendo numa bigorna. Parece-me um
sino de um golpe só.
A floresta respira, vibra, vive seu
dia de glória e paz depois da homenagem aos seus mortos tribais.
Eu apenas faço uma oração de agradecimento
ao bom Deus, que me trouxe até aqui, o que me permitiu participar dos mistérios
desta “terra brasilis”. (Dea Coirolo – 1991-AM)
Dea Coirolo –
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Gravatá, PE/2019